Os crossdressers (CDs) sofrem uma compulsão: se vestir de mulher, embora a maioria deles seja heterossexual e preserve sua masculinidade. Vários deles foram pacientes de Eliane Kogut, psicanalista, doutora em psicologia clínica.
Durante seis anos, Eliane acompanhou os integrantes do Brazilian Crossdresser Club (BCC) e defendeu, em 2006, uma tese de doutorado na PUC de São Paulo sobre esse grupo social: Crossdressing masculino, uma visão psicanalítica da sexualidade crossdresser. Antes, sua tese de mestrado deu origem ao livro Perversão em Cena, sobre perversão sexual, psicanálise e cinema. Na tese, ela distingue erotismo de sexualidade, o que permite ampliar a pesquisa sobre o assunto, além de desvendar um universo tão ambíguo. Em entrevista ao Comunicação, ela fala sobre o assunto, ainda pouco conhecido.
Comunicação: Porque o interesse pelo assunto? É relevante estudar esse comportamento em que sentido?
Eliane Kogut: Não tinha nada ainda a esse respeito, nem a partir desse ponto de vista quando eu fiz a minha tese. Eu tinha feito a minha tese de mestrado em sexualidade humana, sobre perversão e cinema. E nesse período eu tive um paciente que tinha algumas características de crossdressing, que foi quando eu comecei a pesquisar o assunto. Enquanto eu estava pesquisando, também foi publicada uma matéria sobre isso na revista Marie Claire, em 2000. A partir daí eu fui pesquisando mais e mais, e achei que era um tema muito interessante, pouco conhecido. Achei necessário pesquisar o assunto também porque eles passam por muito sofrimento. Às vezes eu converso com colegas meus, psicólogos, e muitos deles ainda não conhecem o crossdressing. Realmente é uma coisa pouco divulgada e pouco conhecida. E isso gera preconceito, o que provoca mais sofrimento ainda.
A matéria da revista Marie Claire pode ser encontrada
aqui
Comunicação: O crossdressing é considerado um distúrbio?
Kogut: É um distúrbio no sentido cultural. No DSM-IX e no CID-10, que são catálogos das doenças psiquiátricas, o travestismo está lá. Agora, se a gente pensar também que em 1974, a homossexualidade ainda estava nesses catálogos, imaginamos que no futuro pode ser que o travestismo saia também. Eu pessoalmente não acho que eles são doentes.Cheguei à conclusão é de que o crossdressing é mais ou menos como uma droga, porque existe uma espécie de fissura. Eles têm que se vestir, é uma necessidade, se não a angústia vai a níveis muito elevados. Não é algo que eles escolhem.Claro, depois que eles fazem parte desses grupos, como o Brazilian Crossdresser Club, aí eles não se vestem apenas quando vem essa angústia. Existe o que eles chamam de urge e purge. A urge é a urgência de se vestir. Aquilo vem com força e, se eles não se vestem, a angústia vai a mil. E a purge é a negação, a reação do tipo: “eu não posso mais ser isso, isso não é bom para mim”. Então eles desistem de tudo, geralmente dão tudo que eles têm – eu conheço pessoas que já deram dois guarda-roupas inteiros - mas aí tornam a fazer, porque isso volta depois com muita força. Não se trata de uma decisão racional, não é desejo - é uma necessidade muito grande de se vestir de mulher.
Comunicação: Existe uma idade, em média, para o surgimento do crossdressing? Pode se desenvolver ao longo da vida? E existem possíveis explicações para o surgimento desse comportamento?
Kogut: A maioria dos homens que eu conheci e pesquisei começou entre 4 e 6 anos de idade. Em termos genéticos, a gente não tem nenhuma comprovação de que exista algum fator dominante. Imagina-se que pode ser que existam o fator genético e o cultural, que são complementares - se houver uma predisposição genética e o meio cultural contribuir, pode resultar no crossdressing. Temos hipóteses, mas não existe nenhuma pesquisa que defina que isso é genético, ou só cultural.
Comunicação: E o que compõe essa influência cultural?
Kogut: Pode ser composta de uma mãe ‘meio apagada’, um pai mais agressivo (não no sentido de agressão física), ou mais afastado do filho, mais ausente, que seja alguém com quem o filho não se identifique muito. Mas, no final, ele tem as duas identificações: a identificação com o pai e a identificação com a mãe.
Comunicação: O crossdresser pode deixar de ter a necessidade de se vestir de mulher?
Kogut: Eu nunca vi um crossdresser que parou completamente de querer se vestir de mulher. No meu consultório, trabalho buscando o que eles querem. Se para a pessoa o crossdressing é um incômodo muito grande, vou desenvolver um trabalho voltado para ampliar mais a vida masculina dela. Mas, mesmo assim, a gente tem que elaborar esse lado feminino que existe, ele tem que ser integrado na personalidade. Se o indivíduo tem vontade de viver bem as duas coisas, e integrar mais esse lado feminino na vida dele, damos esse enfoque ao tratamento. Eu tive um paciente que a única coisa que ele gostava era de ter relações sexuais com a esposa vestido de mulher. Era só isso que ele precisava, não fazia questão de sair vestido de mulher. Alguns que só gostam de vestir roupa íntima feminina. Então existem várias as graduações do crossdressing. Têm aqueles que se vestem todo final de semana e freqüentam festas, e tem os que vão fazendo transformações no corpo, que podem até chegar a se tornar transexuais - que é fazer a cirurgia de redesignação sexual, para se tornar mulher mesmo.
Comunicação: O crossdressing pode então ser considerado um travestismo em menor grau?
Kogut: O crossdresser é um travesti, mas é diferente do travesti de rua. Eles têm a vida masculina deles, o travesti não. Muitos travestis vivem de prostituição, se envolvem com drogas. Isso porque eles têm muita dificuldade em serem aceitos na sociedade. Existe muito cabeleireiro, costureiro, maquiador que é homossexual. Mas você não vê travestis nessas funções, por exemplo. Eles são pouco aceitos, não têm lugar na sociedade. Agora, esse travesti sobre o qual estamos falando, o crossdresser, ele tem a vida normal, como homem, e quando quer, se veste de mulher. Eles também não têm nada de afeminados.
Comunicação: E quanto à sexualidade, o que diferencia o comportamento dos crossdressers?
Kogut: O que foi muito importante na minha tese foi que eu distingui comportamento de erotismo. Comportamento é aquilo que você faz. Erotismo é aquilo que provoca e mantém a excitação. Então, no comportamento, uma parte deles é bissexual (mantém relações sexuais com ambos os sexos) e outra parte é heterosexual (mantém relações com o sexo oposto). Eu não conheci nenhum crossdresser homossexual (relações com o mesmo sexo). E no erotismo eles não são nem hetero, nem homo, nem bissexuais, porque, apesar de eles terem relações com os dois gêneros, masculino e feminino, o erotismo deles não está voltado para a outra pessoa. Por exemplo, para o homossexual, o objeto de desejo é outro homem. Ou seja, um homem forte, musculoso, com barba cerrada. Se for uma mulher, é outra mulher e uma mulher também feminina, não tem essa coisa de ficar procurando só mulheres masculinizadas. Para o heterossexual, o objeto de desejo é o sexo oposto. Mas, para os CDs, o objeto de desejo é a própria figura feminina que eles constroem.
Comunicação: Essa figura feminina é uma personagem?
Kogut: Não é uma personagem, porque não é uma atuação. É um lado deles mesmos, que é assim feminino. Então, quando eles estão com uma mulher, não sempre, mas muitas vezes, o desejo é de ser aquela mulher. A fantasia e o erotismo para o CD é ele se imaginar sendo aquela mulher com quem ele está mantendo relação sexual. Quando ele está com um homem, aquele homem significa que ali existe uma mulher, o que corrobora com a figura feminina dele. É complicado, é ambíguo, não é fácil de compreender.
Comunicação: Eles se sentem como mulheres? De que forma essa presença feminina compõe a personalidade deles?
Kogut: Muitos deles se sentem homens com alma feminina. Muitos me falam assim: “As mulheres deveriam gostar muito de nós, porque somos capazes de compreendê-las muito melhor, nós conhecemos a alma feminina”. Mas o que eu percebi durante a minha tese também é que, embora eles tenham alguns componentes femininos na personalidade, o que eles chamam de alma feminina é uma impressão criada do ponto de vista masculino. É o que eles acham que a mulher é. As mulheres não sentem prazer em balançar os cabelos, com o ‘toc toc’ dos tamancos, ou em vestir uma meia. Mas, na visão deles, a mulher é isso, ela sente prazer em se vestir como mulher. Até porque o prazer deles é esse: vestir uma meia calça, salto alto e balançar os cabelos.
Comunicação: O crossdressing é um fetiche?
Kogut: Não é só fetiche, porque o fetiche é quando a pessoa só tem prazer sexual com uma parte da sexualidade: com a presença de um objeto, ou com uma parte do corpo. E, no caso dos crossdressers, a fixação é no corpo inteiro. O grande prazer é com a figura feminina que eles conseguem montar. Embora eles gostem muito de salto alto, não é só isso que gera prazer. O que traz a excitação é ele se sentir uma mulher, sobre o salto alto. Às vezes eles se vestem apenas com calça jeans e camiseta, mas o importante é eles sentirem que fizeram uma boa montagem de mulher. É diferente também da drag queen, que faz uma figura mais debochada, exagerada e é, normalmente, homossexual.
Comunicação: E como fica a questão dos limites entre o feminino e o masculino? De que forma isso é trabalhado na psicanálise?
Kogut: Trabalho com eles da mesma forma que com qualquer outro paciente. É uma questão existencial, o paciente escolhe até onde ele quer chegar, a gente tenta chegar até esse ponto. É preciso pensar nos custos que ele vai ter pela frente, e se está disposto a pagar o preço - é igual a qualquer outro paciente. Os primeiros que vieram para eu atender ficavam muito preocupados em me contar sobre o crossdressing deles. Eu sempre pedia que eles se colocassem como um todo, porque é assim que a pessoa deve se perceber.
Comunicação: E como é para eles manter a vida dupla, que ocorre na maioria dos casos?
Kogut: Algumas das esposas aceitam, alguns não contam para as mulheres, e geralmente, dos que contam para as mulheres, a família de origem não sabe. Muitos não podem abrir mais esse lado porque teriam que pagar um preço muito alto. Enfrentariam muitas críticas, muita pressão. O grande medo que eles têm é de perder muito com isso. E é aí que entra o trabalho desenvolvemos juntos: se ele quer viver essa vida, se isso é super importante e ele tem essa fissura, então é preciso fazer ele integrar isso da melhor maneira na personalidade, pagando só os preços que ele acha que pode pagar.
Comunicação: Existe um limite entre o crossdressing e o transexualismo?
Kogut: Não tem uma linha divisória. Muitos transexuais passam pela fase do travestismo até descobrirem que eles querem fazer a operação para mudar o sexo e que querem viver como mulher pra sempre. Outros fazem algumas modificações, mas param por aí. Tomam hormônio, mas precisam depois usar faixas para disfarçar os seios. Tomam sol de biquíni, e então não podem mais ir à praia ou piscina com amigos, ou têm de ficar de bermuda e camiseta diante deles. Alguns fazem depilação. Enfim, para quem mora na praia principalmente é um problema. São vários conflitos com relação a esse limite, que são realmente causadores de sofrimento.
Comunicação: Existe uma média de idade em que eles passam a se aceitar como crossdressers e a lidar melhor com todas essas questões?
Kogut: Principalmente os que não se reprimem e que tem convívio social, de alguma forma estão integrando isso na vida deles, seja com mais, ou menos sofrimento. Se a mulher sabe, fica um pouco mais fácil. Mas com a internet, eu acredito que as coisas mudaram um pouco. Quando eu comecei a fazer essa pesquisa, a internet não era tão acessível como é hoje e eles se achavam aberrações. Com a internet e a maior facilidade de achar e trocar informações, eles podem dividir isso com outras pessoas, o que é um alívio muito grande. Mas não existe uma idade certa, o que existe é um processo que depende de quando eles descobrem o que é e começam a se aceitar.
Comunicação: Qual é a importância de um clube como o BCC para os crossdressers?
Kogut: Eles poderem encontrar seus pares, ter seus iguais, não se sentirem tão sozinhos. O grupo dá mais força a eles. E esse grupo já fez mais de dez anos, mas só agora começou a aparecer na mídia. É um movimento muito lento, porque o medo da exposição era muito grande. Mas hoje alguns já se expõem um pouco mais.
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