Fernanda nasceu com corpo de homem, mas ama, sente e pensa como mulher. Eleita em junho a Miss Brasil Transex, ela espera há oito anos para fazer uma cirurgia de troca de sexo no Hospital das Clínicas de São Paulo. Assim como ela, outras centenas de pessoas vivem essa mesma agonia
Camilo Vannuchi
NA FILA: A cabeleireira Fernanda aguarda há anos a convocação do Hospital das Clínicas para realizar sua cirurgia de adequação genital
“Que mulherão!” Foi esse o comentário do motorista que nos levou à casa de Fernanda, a moça da foto ao lado, ao vê-la após a entrevista. Loira, alta, com um decote generoso e sandálias de salto fino, Fernanda está habituada a galanteios, embora não esconda o ar pueril de quem, aos 27 anos, divide a cama de solteiro com um ursinho de pelúcia. Fernanda mora com os pais no mesmo sobrado de classe média em que nasceu, na Zona Norte.
Quase tudo em seu quarto é cor-de-rosa: as paredes, a colcha, as almofadas. Até uma réplica da Pantera Cor-de-Rosa vive pendurada sobre a cabeceira da cama. Aliás, há muito da personagem em Fernanda, uma pantera ao mesmo tempo ingênua e ardilosa, acostumada a desviar dos vasos de flores que, como no desenho, despencam sobre sua cabeça – uma tigresa de unhas rosadas que driblou preconceitos e não poupou esforços até se tornar o que nosso motorista chama de mulherão. Em junho, os predicados de Fernanda renderam a ela o prêmio principal em um concurso de beleza com 13 anos de tradição: o Miss Brasil Transex 2008.
CABEÇA FEITA: A Miss Transex 2008 tem um salão de beleza na Zona Norte. Em novembro, ela representa o Brasil na final, na Tailândia
Filha de um serralheiro e de uma cabeleireira, Fernanda é uma mulher transexual – uma pessoa que, segundo a literatura médica, age, pensa, sente e ama como mulher, embora tenha nascido em um corpo de homem. Incluído na décima versão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, catálogo conhecido como CID-10, o transexualismo é um transtorno de identidade que, estima-se, acomete uma em cada 30 mil pessoas nascidas com genitais masculinos e uma em cada 100 mil nascidas com genitais femininos. “Enquanto o homossexual tem atração por pessoas do mesmo sexo e o travesti gosta de se vestir e de se portar como alguém do sexo oposto (o que pode ocorrer ocasionalmente e não implica necessariamente desejo físico), o transexual é irredutível diante da certeza de que a natureza cometeu um equívoco ao lhe dar um corpo estranho que, muitas vezes, lhe causa repulsa”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade da USP (ProSex). Nesses casos, o tratamento pode incluir a cirurgia de adequação genital, aquela que busca “adequar” o sexo fisiológico ao sexo psíquico (também conhecida como cirurgia de redesignação sexual ou de troca de sexo).
Em São Paulo, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC) realiza gratuitamente a cirurgia desde 1998, um ano após o Conselho Federal de Medicina autorizar sua execução, em caráter experimental, em hospitais universitários. Passados dez anos, o Ministério da Saúde acaba de incluir a operação na lista de procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde e credenciou quatro hospitais para realizá-lo – entre eles, o HC. “Trata-se de uma reivindicação antiga das mulheres transexuais e dos profissionais de psiquiatria”, justifica Alberto Beltrame, diretor de atenção especializada do ministério. “O foco não é a cirurgia apenas, mas todo o processo transexualizador, que necessariamente inclui apoio endocrinológico, atendimento psiquiátrico e acompanhamento psicoterapêutico por pelo menos dois anos, antes e depois da cirurgia.” No HC, um grupo interdisciplinar oferece esse suporte há mais de dez anos. O correto diagnóstico, dizem os especialistas, é a etapa mais delicada. “Trocar de sexo não é como ir à manicure. Se uma cor de esmalte não agrada, a gente escolhe outra. Mas não dá para devolver o pênis a quem se arrepender da cirurgia”, diz Carmita Abdo, do ProSex.
Fernanda espera há oito anos pelo mais importante telefonema da sua vida – do outro lado da linha, uma funcionária do HC dirá que sua cirurgia foi marcada. Quando isso acontecer, Fernanda chegará ao final de um processo que começou na infância, quando o pequeno Fábio Ferreira de Lima, seu nome de registro, brincava de boneca com a irmã caçula enquanto os dois irmãos homens, mais velhos, jogavam futebol. “Eu saía do banho com uma toalha enrolada no cabelo, colocava os vestidos da minha mãe e andava de tamancos pela casa”, diz. “Mamãe achava graça. Hoje, ela diz que nunca conseguiu ver um Fábio em mim.”
SEM VAGAS: Cláudia tentou entrar no programa do HC parea a mudança de sexo, mas soube que os grupos estão lotados
Impaciente com a longa espera: Cláudia (nome fictício) vive uma fase de angústia. Há quatro anos, ela namora um rapaz que, em razão de seu envolvimento com uma transexual, tem sido ridicularizado por parentes e amigos. Ela se sente culpada pela segregação e não vê a hora de fazer a cirurgia. Quando acontecer, pretende apagar para sempre o passado – por isso a recusa em revelar o nome. Aos 36 anos, Cláudia toma hormônios desde os 29, quando deixou o emprego em uma empresa de marketing e resolveu assumir sua condição. Fez depilação a laser, exibe seios proporcionados por hormônios e, há três meses, raspou o pomo-de-adão em uma cirurgia. Cinco anos atrás, tentou se inscrever no programa do HC. “Prometeram me ligar assim que aparecesse uma vaga, mas nunca ligaram”, conta.
A história de Fernanda é parecida com a de muitas outras transexuais, tantas vezes representadas no cinema. Começou a tomar hormônios aos 13 anos, graças a uma amiga mais velha que, todo mês, buscava para ela duas cartelas de anticoncepcionais no posto de saúde. “Eu tomava 56 pílulas em 15 dias”, conta. Em razão da superdosagem de estrógeno, a voz de Fernanda não engrossou, os pêlos rarearam, o pomo-de-adão não se desenvolveu e as mamas cresceram. “Aos 15 anos, tive de comprar um sutiã”, afirma. Aos 16, Fernanda descobriu os hormônios injetáveis, assumiu a nova identidade e abandonou o curso de magistério. Da mãe cabeleireira, herdou a profissão. Aos 19, ficou sabendo que o HC realizava a cirurgia e inscreveu-se no programa. Colocou silicone nos seios, fez lipoaspiração, plástica no nariz e amargou uma espera de sete anos até ser convocada, em dezembro, para a avaliação final. Ao longo do primeiro semestre, Fernanda freqüentou sessões de psicoterapia e passou por uma série de testes exigidos para o diagnóstico. Cumprida a maratona, foi considerada apta para a cirurgia. Agora, só falta o telefonema. “Era para eu já ter sido chamada. Chegaram a agendar para 8 de agosto, mas acabaram adiando”, diz.
O ritmo de cirurgias no HC é lento. Desde 1997, apenas 25 transexuais masculinos concluíram o processo transexualizador e trocaram o pênis por uma “neovagina” (termo cunhado para designar o canal esculpido na região do períneo que permite à transexual ser penetrada). Na média, acontecem três cirurgias por ano. Hoje, há aproximadamente 60 pacientes em tratamento, dez na mesma situação de Fernanda e outras 200 inscritas para iniciar o processo. “Nem todas receberão a indicação da cirurgia”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, responsável por diagnosticá-las. “Transexual masculino é o indivíduo que se sente mulher e faz tudo para se tornar uma. Não usa o pênis para nada e, muitas vezes, tem aversão a ele, chegando a se mutilar.”
Procedimento de alta complexidade, a cirurgia consiste em uma delicada manobra na qual a uretra é desviada, os testículos são retirados, o prepúcio se transforma na parede interna da neovagina e a pele da bolsa escrotal é usada na construção dos grandes lábios. “A sensibilidade é preservada, de modo que a transexual operada tem prazer na penetração”, afirma o urologista Frederico Queiroz, responsável pelas cirurgias no hospital. Até o ano passado, Queiroz era o único cirurgião do HC disposto a atender essa população. No início de 2007, no entanto, o médico completou 70 anos e foi obrigado a se aposentar em razão da idade. Desde então, um substituto tem sido procurado. O primeiro candidato a ser treinado pediu afastamento há alguns meses – o que contribuiu, junto com o incêndio que atingiu os ambulatórios em dezembro, para aumentar o tempo de espera. “Temos direito a usar uma única sala do centro cirúrgico durante um único dia por mês para realizar não apenas as novas cirurgias, mas também cirurgias de retorno”, diz Queiroz, referindo-se a eventuais retoques e reparos.
Os gargalos mencionados pelo urologista colocam em xeque a relevância da inclusão do processo transexualizador no âmbito do SUS. No HC, a novidade foi recebida com nervosismo. Existe, ali, a percepção de que a portaria do ministério não solucionará os demais problemas, como a falta de pessoal e o engarrafamento no centro cirúrgico. Berenice Mendonça, professora titular de endocrinologia e chefe do grupo interdisciplinar, negou-se por e-mail a dar entrevista. “Não temos competência para ampliar o número de atendimentos”, justificou. “Qualquer indicação na imprensa aumenta muito o número de pacientes autodenominados transexuais que procuram o hospital, o qual não tem condição de atendê-los. Isso cria uma falsa expectativa e gera insatisfação e desconforto nos pacientes.”
Para o movimento transexual organizado, a decisão do SUS é, acima de tudo, uma conquista histórica. Agora, seu foco de atuação será por uma normatização judicial da troca de nome (e de sexo) no registro civil, obstáculo que costuma complicar a vida das transexuais que buscam emprego formal e desejam se casar no papel com seus companheiros. “Tivemos uma audiência com o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e ele nos prometeu que, a partir de agora, todas as ações ministeriais referentes às transexuais serão conduzidas na área técnica da saúde da mulher”, diz Carla Machado, do Coletivo Nacional de Transexuais, comemorando outra vitória. Para o Ministério da Saúde, o próximo desafio é habilitar novos centros. “Sabemos que existe uma grande demanda e queremos que o processo transexualizador deixe de ser experimental para se tornar um procedimento regular nos hospitais”, diz Alberto Beltrame, do ministério.
Fernanda, nossa Miss Brasil Transex, diz ter chegado ao limite da paciência. Depois de romper um namoro de três anos e desfazer um noivado, ela se sente angustiada com a impossibilidade de se casar e com a necessidade de apagar a luz e esconder o próprio corpo toda vez que vai para a cama. “Não quero ficar assim até os 30”, desespera-se. Com viagem marcada para a Tailândia, onde disputará a etapa mundial do concurso de beleza transexual em novembro, Fernanda faz as contas para ver se consegue voltar de lá operada. O país é referência nesse tipo de cirurgia e os 5 mil euros cobrados pelo procedimento cabem em seu orçamento. “Mas e se houver alguma complicação e eu tiver de ficar mais de um mês lá para me recuperar ou fazer outra cirurgia?”, indaga. Em Jundiaí, no interior do Estado, um famoso cirurgião especializado no procedimento se dispôs a operá-la por R$ 25 mil. Fernanda ainda prefere esperar pelo telefonema do Hospital das Clínicas. Mas não por muito tempo.
Para o movimento transexual organizado, a decisão do SUS é, acima de tudo, uma conquista histórica. Agora, seu foco de atuação será por uma normatização judicial da troca de nome (e de sexo) no registro civil, obstáculo que costuma complicar a vida das transexuais que buscam emprego formal e desejam se casar no papel com seus companheiros. “Tivemos uma audiência com o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e ele nos prometeu que, a partir de agora, todas as ações ministeriais referentes às transexuais serão conduzidas na área técnica da saúde da mulher”, diz Carla Machado, do Coletivo Nacional de Transexuais, comemorando outra vitória. Para o Ministério da Saúde, o próximo desafio é habilitar novos centros. “Sabemos que existe uma grande demanda e queremos que o processo transexualizador deixe de ser experimental para se tornar um procedimento regular nos hospitais”, diz Alberto Beltrame, do ministério.
Fernanda, nossa Miss Brasil Transex, diz ter chegado ao limite da paciência. Depois de romper um namoro de três anos e desfazer um noivado, ela se sente angustiada com a impossibilidade de se casar e com a necessidade de apagar a luz e esconder o próprio corpo toda vez que vai para a cama. “Não quero ficar assim até os 30”, desespera-se. Com viagem marcada para a Tailândia, onde disputará a etapa mundial do concurso de beleza transexual em novembro, Fernanda faz as contas para ver se consegue voltar de lá operada. O país é referência nesse tipo de cirurgia e os 5 mil euros cobrados pelo procedimento cabem em seu orçamento. “Mas e se houver alguma complicação e eu tiver de ficar mais de um mês lá para me recuperar ou fazer outra cirurgia?”, indaga. Em Jundiaí, no interior do Estado, um famoso cirurgião especializado no procedimento se dispôs a operá-la por R$ 25 mil. Fernanda ainda prefere esperar pelo telefonema do Hospital das Clínicas. Mas não por muito tempo.
Mudança de sexo
Várias produções abordaram o drama dos transexuais no cinema. Conheça alguns “clássicos” sobre o tema:
(EUA, 1986) – História real do médico e jogador de tênis Richard Radley, interpretado por Vanessa Redgrave, que enfrenta o boicote da sociedade americana ao trocar de sexo. Após adotar o nome de Renee Richards, a transexual fez carreira no tênis feminino e chegou a ser técnica de Martina Navratilova.
(Espanha, 1987) – Carmen Maura, uma das atrizes prediletas do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, interpreta a irmã transexual de um diretor de cinema (pelo qual o personagem de Antonio Banderas é obcecado) que se vê envolvida em uma trama repleta de desencontros e confusões.
(Inglaterra, 1992) – Ganhador do Oscar de roteiro original, este filme de Neil Jordan conta a história de um guerrilheiro do IRA (Stephen Rea) que procura a namorada de um soldado inglês preso e morto pela organização terrorista para falar sobre o ocorrido e acaba se apaixonando pela moça, que esconde um segredo.
(Bélgica/FRANÇA/INGLATERRA, 1997) – Comovente história de um garoto de 6 anos (George du Fresne) que cresce com a certeza de que nasceu no corpo errado. Recriminado pelos pais e pelos vizinhos, ele se refugia em um universo róseo, com vestidos e bonecas. Primeiro longa do diretor belga Alain Berliner.
(EUA, 2001) – Hedwig é uma cantora que nasce homem na Alemanha. Apaixonada por um recruta americano, se submete à cirurgia de troca de sexo para se casar com ele. Depois, já nos EUA, Hedwig é abandonada. A história da roqueira gerou filme e peça off-Broadway, ambos escritos e estrelados por John Cameron Mitchell.
(EUA, 2005) – Felicity Huffman, do seriado Desperate Housewives, vive Bree, uma transexual que, às vésperas de receber o laudo favorável à cirurgia, descobre que tem um filho, fruto de um antigo relacionamento com uma amiga. Obrigada pela psiquiatra a visitá-lo, Brie inicia uma viagem atrás do rapaz.
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