04/09/2008 - 17:29 - Atualizado em 05/09/2008 - 22:46
Ele é pai, marido e homem de negócios. Debaixo da camisa, esconde seios e o desejo irrefreável de vestir-se de mulher. Como entender o universo ambíguo de um “crossdresser”?
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que passa horas a fio
No espelho do toucador
Trecho da música de Suely Costa e Cacazo
Márcia se exibe, mas esconde sob a máscara o rosto de Márcio. Tem sido assim desde os 4 anos de idade
Por qualquer ângulo que se olhe, o advogado Márcio é um homem de sorte. Tem uma mulher linda, filhas amorosas, saúde e boa aparência. Aos 45 anos, por força do próprio trabalho, é dono de um sólido patrimônio. Seus negócios lhe asseguram o que se costuma chamar de independência financeira. Márcio trabalha no escritório que montou em casa, viaja quando deseja e pode dar-se ao luxo de passar uma tarde inteira, no meio da semana, fazendo a lição de casa com a filha mais velha, de 12 anos. Tem uma vida tranqüila, invejável mesmo, exceto por aquilo que ele chama de “meu problema”. Duas vezes por semana, Márcio sai do apartamento onde mora e vai para outro, no centro velho de São Paulo, onde se veste, dos pés à cabeça, das sandálias de salto 12 à longa cabeleira castanha, como mulher.
Com quase 1,90 metro de altura, 90 quilos e ombros de remador, a figura feminina que ele compõe nessas ocasiões não é muito delicada. Mas isso não faz diferença. Márcio é “crossdresser”, palavra que designa um grupo de homens que sofrem a compulsão de trajar-se e portar-se como mulher. “Montado”, quer dizer, vestido de mulher, Márcio transforma-se em Márcia. E parece perfeitamente feliz. Na pele dela, de minissaia e blusa justinha, pode passar a noite no computador, exibindo-se pela câmera web em sites de encontros. Ou pode sair e jantar fora com amigos crossdressers como ele. Em ocasiões mais raras, tem encontros sexuais com homens. Essa é sua vida secreta, de que apenas sua mulher e algumas poucas pessoas têm conhecimento.
Numa enorme prova de confiança, Márcio permitiu que eu acompanhasse seu cotidiano durante três semanas. Abriu as portas de suas duas casas, me apresentou sua mulher, mostrou-me retratos do casamento e fotos das filhas. Fui com ele a um encontro de trabalho, conheci o grupo de que ele participa – o Brazilian Crossdresser Club, ou BCC – e conversei, autorizado por ele, com um dos psicólogos com quem se tratou. O resultado dessa convivência está exposto a seguir, com mudanças e omissões que permitem proteger a identidade de Márcio e de sua família. Foi uma exigência dele e da mulher, e faz sentido. Em setembro de 2000, a revista Marie Claire publicou a foto de um casal que vivia de forma semelhante. Apesar de escondida por um leque, a mulher foi reconhecida. Seu marido, exposto, foi demitido da multinacional em que trabalhava. Márcio não pode ser demitido porque é patrão, mas tem muito a perder. “Minha intimidade com meu marido está perfeitamente resolvida”, diz Priscilla, de 27 anos, casada com Márcio desde 2003. “Meu único medo é a exposição e o escândalo. As pessoas não entendem. Tratariam a ele como doente e a mim como louca ou oportunista. Isso atrapalharia um relacionamento que é muito bom.”
Márcio e Priscilla vivem protegidos por uma redoma de segredo e, dentro dela, levam uma vida que não é fácil nem simples. Há dois anos, desde que começou a tomar hormônios, Márcio não pode mais ir à praia ou partilhar a piscina dos amigos. Seus mamilos cresceram e se transformaram em seios, que ele torna ainda mais femininos com a marca de biquíni do bronzeamento artificial. A cintura grossa de esportista foi afinada com lipoescultura. As nádegas, arredondadas por um implante. Pêlos no rosto já não há. Assim como as axilas, as faces sofreram depilação a laser, permanente. Cabelos compridos e lisos, sobrancelhas delineadas e as unhas longas e tratadas completam o personagem. Na maior parte do tempo, quando não está travestido, Márcio usa faixas ou coletes cirúrgicos sob a camisa folgada para esconder os seios. Isso tem de ser feito mesmo em casa, por causa dos empregados.
Na manhã em que fui trabalhar com ele, Márcio vestia uma camiseta e uma jaqueta de couro. Não se percebia nada. Os cabelos, amarrados em rabo-de-cavalo, não chamam a atenção, assim como o brinco. Há muita gente assim nas ruas de São Paulo. O que salta aos olhos é o formato das sobrancelhas e as unhas longas. A advogada com quem ele formalizou a assinatura de um contrato pareceu nada notar. Ou foi discreta. Márcio diz que nas raras ocasiões em que tem de ir ao Fórum, uma ou duas vezes por ano, sua aparência chama a atenção, mas juízes e colegas sabem que a discriminação é ilegal. Limitam-se a olhar discretamente. Ainda assim, ele prefere resolver quase tudo sem sair de casa, por telefone ou internet. Delega a outros advogados a administração diária de seus três negócios. Coisas que outras pessoas fazem normalmente, como ir à academia, estão proibidas para ele, por causa das formas femininas. “Eu teria de usar um top”, diz ele. E acrescenta, com um traço de melancolia: “Não recomendo hormônios para ninguém. O custo pessoal é muito alto”.
Duas vezes por semana, o empresário de 1,90 metro se transforma em mulher e pode terminar a noite com um homem
Márcio diz que começou a tomar pílulas anticoncepcionais aos 14 anos. Queria uma pele mais feminina, menos pêlos, talvez um pouco de quadris e seios. Foi descoberto pelo pai – e mandado a um psicólogo. Parou por um tempo, mas a pulsão era forte e retornou. Desde pequeno ele se vestia de menina. Adolescente, pôs um cofre no quarto onde guardava seus pertences de mulher: sapatos, vestidos, meias... Márcio afirma que não foi um garoto afeminado, ao contrário. Diz que se destacava nos esportes, chamava a atenção das meninas, participava com sucesso de atividades de grupo. Lutou jiu-jítsu e capoeira e, mais de uma vez, saiu no braço com os colegas da escola de elite na qual estudava, em São Paulo. Esse lado macho convivia, na clandestinidade, com as sessões privadas de travestismo. “Eu me sentia diferente, sabia que era diferente, mas ninguém notava”, afirma. Esse relato confere perfeitamente com a descrição da psicanalista brasileira que mais entende de crossdressers, a paulistana Eliane Kogut. Ela acompanhou os integrantes do BCC por sete anos. Vários deles foram pacientes em seu consultório. Eliane defendeu, em 2006, uma tese de doutorado na PUC de São Paulo sobre esse grupo social. Na tese, diz que eles começam a se vestir de menina por volta dos 4 anos e que essa compulsão irrefreável – e inexplicável – os acompanha pelo resto da vida. Sem prejuízo, diz ela, da masculinidade. Os crossdressers, também chamados CDs, não foram meninos delicados nem são homens afeminados. Namoram, casam, têm filhos e sofrem com o desejo de se vestir de mulher. “Antes da internet a vida deles era um inferno”, afirma Eliane. “Viviam isolados, cada um deles sentindo-se uma aberração”.
Márcia fica feliz no toucador, mas a aparência feminina é um problema social para Márcio
O senso comum sugere que esses homens são homossexuais reprimidos. Eliane afirma que o senso comum está errado. “Não há registro, na literatura médica ou na minha experiência, de crossdresser que tenha se revelado homossexual”, diz ela. O caso de Márcio é exemplar. Quando está de sapo – isto é, vestido como homem na gíria dos crossdressers –, ele não se distingue, pelos modos, de um sujeito qualquer de sua classe social. Talvez seja até um pouco mais assertivo que a média. Fala alto, coloca-se com firmeza, não há sinal de maneirismos em sua linguagem corporal. No trato com a mulher, tem uma postura de macho dominante – fala muito, rouba a cena, às vezes “explica” os sentimentos da parceira. Nada ofensivo ou grosseiro, mas a velha patronagem masculina está lá. Antes de conhecer Priscilla, ele teve dois casamentos e uma fieira de namoradas. Jovem, bonito, bem-sucedido, diz que transitava num universo de festas freqüentado por modelos, artistas e filhas de empresários. Como qualquer homem de meia-idade, adora exibir conquistas passadas. “Eu estava procurando”, afirma, enquanto segura a mão da mulher e a olha de um jeito carinhoso. Toda vez que se envolvia com uma garota, diz Márcio, tentava descobrir os sentimentos dela sobre práticas de sexo menos convencionais. A maioria não passava no teste. Eram conservadoras e, como tais, descartadas. Nas duas vezes anteriores em que se casou, as mulheres sabiam sobre Márcia, sua persona feminina. Era uma precondição. Com Priscilla, foi diferente.
Mais que tolerar, ela tornou-se cúmplice. Embora 18 anos mais nova, tinha experiência sexual e – nas palavras dela – “vontade de fazer coisas diferentes”. “Na primeira vez em que saímos, ela me disse que tinha a fantasia de vestir-se de homem com um homem vestido de mulher”, diz Márcio. Segundo Priscilla, era apenas uma brincadeira. Soou como presságio aos ouvidos do futuro marido. Namoraram, noivaram de aliança no dedo e casaram-se rapidamente, com todos os festejos e formalidades: o garanhão que se vestia de mulher às escondidas e a mocinha espevitada com rosto de Mirian Rios. No fim de maio, durante as festas que antecederam a Parada Gay de São Paulo, Márcia e Priscilla foram juntas ao The Week, conhecida balada gay de São Paulo. “Ela estava deslumbrante. Eu estava com uma saia curtíssima, mas ninguém nos deu bola”, diz Márcio.
Há uma chance real de que isso dê certo? É possível que um homem que gosta de se sentir mulher e uma garota de gosto sexual apimentado formem um casal estável? Se depender da opinião dos psicólogos, sim. “Essas pessoas podem ser até mais felizes”, diz Oswaldo Rodrigues, do Instituto Paulista de Sexologia. “Elas têm coragem de fazer coisas que outros não têm coragem de fazer. Isso une e dá sentido a sua vida.” Do ponto de vista dos psicólogos, todo casamento é uma espécie de arranjo existencial mais ou menos precário e não existe um deles que seja igual ao outro. O arranjo de Márcio e Priscilla é de um tipo raro. O tempo de sua duração e a intensa ligação entre os parceiros sugerem que se trata de algo sólido. “Se as pessoas não estão vinculadas, esse tipo de união acaba em dois tempos”, diz Rodrigues. Ele já recebeu em seu consultório, no bairro de Perdizes, vários casais desse tipo. Diz que, tipicamente, a conversa começa com o homem dizendo a ele: “Doutor, explica para a minha mulher que não tem nada de errado comigo”. Claro que não é tão simples. Mas as pessoas, quando se querem e se entendem, costumam arrumar um jeito de organizar a vida. “Não é o sexo que mantém os casamentos. É o cotidiano, é a cumplicidade”, diz Rodrigues
Márcia refletida no espelho de teto de seu quarto. Se a persona feminina é aceita pela família, a angústia diminui
Sexo, porém, é uma grande questão. Márcio não se furta a discuti-la. Diz que sua relação com a mulher é “perfeitamente normal”, embora haja consenso de que os hormônios femininos que ele toma (progesterona e estrogênio) derrubam a libido. “Eu transava todos os dias. Agora, com os hormônios e com o convívio, a freqüência baixou para um ou dois dias por semana”, afirma. Num casamento de cinco anos, parece perfeitamente normal. Mas a estatística não diz tudo. É por isso que eu sinto intensa curiosidade diante de Priscilla tão logo somos apresentados. Ela tampouco recusa a conversa sobre sexo, embora seja mesquinha nos detalhes. Vestida como a universitária que era até o ano passado, de tênis, jeans e blusa branca, prende os cabelos e acende um cigarro antes de fixar os olhos castanhos em mim. “A Márcia não piorou minha vida sexual”, afirma.
Estamos na sala de estar da garçonnière de seu marido, que ela ajudou a decorar. Ao nosso redor estão sete homens de idades variadas, vestidos de mulher. Tratam-se por Kelly, Elisabeta, Márcia... O marido de Priscilla é um deles. Priscilla conta que ficou chocada quando o viu “montado” pela primeira vez, mas acabou se acostumando – embora, ainda hoje, se incomode com os trejeitos femininos de Márcia. “É chato, mas todo mundo tem defeitos”, diz ela. Sim, mas poucos homens depilam as sobrancelhas e fazem crescer seios. “Não me incomoda”, afirma Priscilla. “A aparência dele foi mudando aos poucos. Só percebo quando olho as fotografias”. Com o perdão da intrusão, a vida sexual do casal não foi destruída pelas formas femininas dele? “Não”, ela responde. “O desejo não vem necessariamente do corpo. Depois de um tempo de casamento, a vida sexual muda muito, mesmo que o corpo não mude.” Pode ser apenas uma racionalização, mas Priscilla a sustenta com convicção. Na tarde em que conversei com os dois na casa deles, dias depois, Márcio gabava-se de que a noite anterior do casal tinha sido “espetacular”. Ela limitou-se a olhá-lo de lado, em silêncio desaprovador, como as mulheres fazem com freqüência diante das gabolices sexuais dos maridos. Era uma cena de casamento perfeitamente corriqueira, até na banalidade.
Os psicólogos dizem que as mulheres de crossdressers têm em comum o pavor de que seus maridos se revelem homossexuais. Priscilla diz que não é seu caso. Mesmo que Márcio saia com homens de vez em quando, ela diz “ter certeza” de que ele gosta de mulher. A tese de doutorado de Eliane Kogut propõe uma abordagem diferente desse assunto. Diz que o erotismo dos crossdressers – aquilo que dispara e sustenta a excitação – é voltado para eles mesmos, não para outros homens ou mulheres. Quando fazem sexo com uma mulher, excitam-se ao se colocar mentalmente no lugar delas. Se estiverem com homens, a excitação sexual vem da confirmação de sua identidade feminina. “O objeto final do desejo deles é a mulher que são capazes de montar”, diz Eliane. “É um erotismo autocentrado.” Há outro argumento robusto contra a tese da homossexualidade reprimida: se o sujeito deseja ocultar desejos homoeróticos, seria improvável fazê-lo vestido de mulher, atraindo ainda mais atenção para sua feminilidade.
No caso de Márcio e Priscilla, o desejo, como quer que ele se manifeste, mistura-se aos cuidados mútuos. Quando ele sai para um encontro com outro homem, ou mesmo quando vai entrevistar um candidato a sócio do BCC, o casal combina códigos de segurança ao celular. “Há muito homófobo por aí”, diz ele. Da mesma forma, quando ela sai para encontros com outros homens, o que também acontece, ele às vezes faz questão de conhecer o sujeito. “Me preocupa a segurança dela”, afirma. Afetivamente, claro, o risco é permanente. A mulher jovem e linda pode se apaixonar por um sujeito mais másculo ou apenas mais simples do que ele, diz Márcio. “Mas eu também posso encontrar outra mulher, não posso? Ninguém está 100% seguro”, afirma
Quantas pessoas vivem dessa maneira? Na tese de Eliane Kogut cita-se uma estatística do início dos anos 90, segundo a qual algo entre 0,5% e 3% da população seria composta de crossdressers e travestis. O intervalo é grande – e os porcentuais provavelmente não significam nada. Sabe-se que o BCC reúne no Brasil cerca de 350 associados, mas isso também não diz muito. Julga-se, ou melhor, suspeita-se que a maioria dos CDs é casada. Nos Estados Unidos, a mais antiga associação mundial de crossdressers, fundada em 1976 com o nome de Tri-Ess International (ou Sociedade para o Segundo Eu), promove festas anuais gigantescas, mas a organização não informa quantos associados tem. Se faltam estatísticas, existe alguma história. O imperador romano Heliogábalo, que reinou brevemente no século III, vestia-se de mulher publicamente. Chegou a encenar um defloramento ao se casar com um escravo. Foi morto por seus soldados. O Chevalier d’Eon é outra figura famosa no panteão da ambigüidade. Viveu no século XVIII na corte francesa, como nobre e diplomata. Fugiu para a Inglaterra depois da revolução de 1789 e lá morreu sem que se soubesse exatamente a que gênero pertencia. Houve apostas na Bolsa de Londres que terminaram com a autópsia: era homem. Recentemente, foi publicada nos Estados Unidos a biografia de Gregory Hemingway, filho de Ernest, escritor tido como o mais durão do século XX. No livro, escrito por John Hemingway (neto de Ernest), descobre-se que Gregory, além de bipolar e autodestrutivo, tinha um problema insolúvel de identidade de gênero: o mesmo homem que caçava elefantes na África e se atirava sobre as mulheres em toda parte freqüentava os bares do Estado de Montana vestido de mulher. Teve quatro casamentos, os dois últimos em meio a intensas transformações cirúrgicas que fizeram dele (quase) uma senhora.
Casos como esse de Gregory Hemingway sublinham a confusão no mundo das novas sexualidades. Crossdressers se diferenciam de travestis por não se prostituir, por transitar regularmente entre a situação de homem e mulher – os travestis ficam montados permanentemente – e, em certa medida, por ser mais contidos na modificação corporal. CDs raramente fazem implantes de silicone e cirurgias. Márcio, com seios e esculturas corporais, está no limite das duas categorias. Há, por fim, os transexuais, aqueles que se sentem mulheres aprisionadas no corpo de homens. Estes às vezes passam anos na condição de crossdressers antes de se decidir por uma operação de mudança de sexo. Eliane Kogut diz que 6% dos CDs que ela acompanhou em sua pesquisa fizeram a cirurgia e assumiram a identidade de mulher. Tudo isso, claro, é visto pela psiquiatria tradicional por uma lente rigorosa e desaprovadora. Ao contrário da homossexualidade, o travestismo ainda é considerado patologia, um transtorno de identidade de gênero. “Com o tempo, isso vai mudar”, afirma Eliane. “A homossexualidade só deixou de ser considerada doença em 1974”.
Diante de um senhor alto e corpulento, vestido com sandália branca e peruca ruiva, é difícil esconder o desconforto. Estou no apartamento de Márcia, conversando com um grupo do Brazilian Crossdressers Club. A organização foi criada há 11 anos com o objetivo de ajudar os CDs e colocá-los em contato uns com os outros. O grupo se comunica por meio do site www.bccclub.com.br. Ali eles trocam literatura, serviços e organizam um grande encontro anual, o Holliday En Femme, durante o qual passam um fim de semana inteiro vestidos de mulher. O senhor alto de peruca ruiva acabou de se integrar ao grupo, com cognome de Márcia Polari. Tímido, está vivendo as primeiras experiências de sair em público vestido de mulher. Ele é médico, casado, pai de filhos adultos. Diz que costumava montar-se apenas nos Estados Unidos, quando viajava. Comprava roupas íntimas e calçados de mulher no Wal-Mart, trancava-se no quarto do hotel – e ali passava horas imerso em fantasias. Agora é diferente. Desde que conheceu o BCC, tem se “montado” com freqüência. Seu lado feminino está exigindo mais – a ponto de ele se perguntar sobre o futuro de seu casamento. Sua mulher não sabe da vida paralela. Semanas atrás, o grupo de crossdressers contratou um profissional para maquiar a “novata” pela primeira vez. De costas para o espelho, recebeu base, batom e seus olhos foram pintados. Quando a cadeira girou e ele se viu no espelho de maquiagem, soltou um grito: “Esta sou eu!”. Aos 62 anos.
Psicólogos e psicanalistas dizem que a angústia dos CDs será tanto mais grave quanto mais clandestinos eles viverem. “Quanto mais você tem a esconder, maior a angústia”, diz Eliane. A pulsão de vestir-se de mulher emerge com mais força em períodos de ansiedade e frustração, como ocorre com viciados em drogas. É o período que os CDs chamam de “urge”. Quando finalmente se vestem, sentem um prazer que é propriamente sexual, e a ansiedade se reduz. A isso, porém, segue-se um período de culpa, durante o qual tomam a decisão de “nunca mais” se travestir. Ao sentimento negativo, os CDs dão o nome de “purge”. Os períodos opostos, de entrega e negação, parecem se alternar ao longo da vida dos crossdressers. “Conheci um deles que tinha feito quatro guarda-roupas”, diz Eliane. Quando o sujeito encontra um lugar seguro para a persona feminina em sua vida – como ocorreu com Márcio –, a gangorra desacelera e a angústia decresce. A mulher de Márcio diz que ele se tornou muito mais produtivo nos últimos anos, quando Márcia passou a ter um papel importante na vida deles. O que parece difícil é livrar-se definitivamente da pulsão. Os CDs dizem que não há ex-crossdresser, ainda que médicos como Oswaldo Rodrigues relatem casos de pacientes que deixaram essa situação para trás. “O ser humano é o animal mais plástico que existe”, diz ele. “Toda compulsão é mutável”.
O site do Tri-Ess americano contém um documento eloqüente para quem deseja entender o universo dos crossdressers: os 12 direitos das mulheres de CDs. A lista contém coisas engraçadas – “Temos o direito de ser consultadas antes que usem nossas jóias e maquiagem” – e outras de teor sombrio. “Temos o direito ao corpo masculino dos nossos maridos”, diz o documento. “Nenhuma parte no casamento tem o direito de alterar o corpo sem o consentimento do outro”. Esse comentário revela um comportamento dos crossdressers que é motivo de grande ansiedade entre suas esposas: a tendência a avançar na personificação feminina, a ponto de colocar em risco o trabalho, a família e o convívio social. Márcio tinha cabelos curtos, raspava a barba e aparava as unhas quando se casou com Priscilla. Hoje, toma hormônios, se depila e montou um apartamento para seu lado mulher. Os CDs com quem conversei dizem que “testar os limites da transformação” é um clássico entre eles.
Pergunto ao casal Márcio–Priscilla onde a mudança física dele vai parar. Ele, sem hesitar, diz que já parou. Ela faz um gesto de incerteza. “As mulheres são muito importantes na vida dos CDs. Elas dão o limite”, afirma a psicanalista Eliane. Priscilla usa palavras parecidas para falar de seu casamento: “Eu me sinto a âncora dele”. A filha adolescente de Márcio vem sendo informada aos poucos da situação e, segundo ele, recebe tudo “com naturalidade”. Ela é capaz, por exemplo, de fazer piada com os seios do pai e de rir quando ele, num arroubo de moça, “precisa” comprar uma sandália exposta na vitrine do shopping. Tamanho 41. Parece grotesco? Semanas atrás, eu também acharia. Depois de conviver com Márcio e sua família, depois de conversar com seus amigos e de ouvir os psicólogos, minha opinião mudou. O sujeito é bom pai, bom marido e leva uma vida sexual da pesada. E daí? Tanto quanto eu pude perceber, ele não faz mal a ninguém. Pesa sobre seus atos, ademais, uma camada de inevitabilidade. Na primeira vez em que conversamos, Márcio me disse: “Se existisse uma pílula que acabasse com a Márcia, eu tomaria. A vida seria mais simples”. Quem duvida?
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