Embora seja um processo individual, que cada pessoa vive de modo muito próprio e diferenciado, a transgeneridade é, na sua essência, um fenômeno social, uma vez que gênero é uma variável social, construída a partir das diferenças naturais entre os sexos e que constitui o mais terrível e sutil dos sistemas de repressão que a humanidade já concebeu.
Pessoas transgêneras são basicamente pessoas de alguma forma “desajustadas” aos padrões de gênero impostos pela sociedade a todos os seres humanos. Alguns transgêneros têm apenas desajustamentos leves, que ocorrem de tempos em tempos, e que se manifestam preponderantemente na forma de travestismo. Os casos mais agudos de transgeneridade impõem mudanças radicais no próprio corpo do indivíduo, a fim de que ele encontre um mínimo de conforto psíquico e dignidade social.
Qualquer que seja o grau de “desajustamento” da pessoa transgênera, a questão é que a sociedade como um todo não está nem um pouco equipada para lidar com esses casos. As instituições da nossa sociedade, rigidamente construídas em cima do binômio “masculino” e “feminino”, não têm meios de lidar com pessoas que não se enquadram nem em uma, nem em outra dessas duas categorias. E isso se reflete desde as coisas mais prosaicas, como sanitários públicos, construídos para atender ao gênero masculino ou ao gênero feminino, até coisas muito complexas, como o nome da pessoa no registro geral, na carteira de habilitação, na certidão de casamento, no diploma de curso, etc, etc.
Enfim, como quaisquer outros cidadãos, pessoas transgêneras também se casam, constituem famílias, têm filhos, dirigem automóveis, pagam impostos, freqüentam escolas e, naturalmente, utilizam sanitários públicos!
O grande problema é que, não havendo uma categoria socialmente reconhecida para acolher as pessoas transgêneras, todas sempre foram obrigadas a viver na marginalidade, na exclusão e no contrangimento diante das situações mais comuns e triviais para todas as demais pessoas.
Quando fui abordada, há duas semanas atrás, por uma patrulha policial, em plena madrugada, tive que exibir para eles meus documentos masculinos, embora eu não estivesse vestida como um homem. Constrangedor? Sim, com certeza! Além do que há sempre a possibilidade do policial apreender a motorista e o veículo, uma vez que a pessoa nos documentos não é a pessoa que ele tem à sua frente. Ocasionalmente eu fui tratada com o respeito que a força policial deve a qualquer cidadã ou cidadão. Mas podia ser diferente. Se o policial quisesse, poderia ter armado um belo circo e me colocado bem no centro do picadeiro...
Num outro caso, vale a pena lembrar que muitas de nós tem fotos escondidas nos seus laptops e roupinhas escondidas no fundo falso de seus guarda-roupas. Pois bem, uma amiga emprestou seu laptop ao filho, que usou a máquina junto com a namorada, que fuçou fuçou e acabou trazendo à tona as “fotos proibidas”. O resto da história vocês conhecem.
Como não são poucas as esposas que, ao descobrirem o que chamam de “vício” do marido, conseguem infernar sua vida para o resto da vida.
Como as fotos que marcaram momentos de intensa felicidade de pessoas transgêneras e que estavam em seus blogs e orkuts da vida têm, de uma hora para outra, que ser violentamente deletadas em nome de alguma “caça às bruxas” que se desencadeou de repente, no trabalho, na família, na vizinhança...
Conheço uma pessoa transgênera que teve que desaparecer inteiramente do mundo (ainda continua escondida, anos depois...) porque alguém conhecido a reconheceu numa foto em algum site remoto do mundo virtual.
Outras, perderam emprego, respeitabilidade, segurança, tudo enfim, apenas porque foram pegas por praticarem a coisa que faz sentido em suas vidas: - a inofensiva prática de se travestir!!!
Há histórias e mais histórias e todas comoventes e dolorosas. Como a da transexual que teve negada a cirurgia final por “não se parecer” de maneira alguma com o que os médicos julgam ser o “perfil de uma mulher”...
E há uma infinidade de pessoas, vivendo em grande distúrbio e sofrimento psíquico simplesmente incapazes de aliviar suas tensões em virtude do medo natural que sentem em se transformarem, elas próprias, em personagens de sofridas histórias semelhantes a essas.
31 de março, Dia Internacional da Visibilidade Transgênera, foi instituído exatamente para mostrar nossas histórias à sociedade em que vivemos e trabalhamos como pessoas absolutamente comuns. Não há que se exigir ou se reivindicar nada em especial além da compreensão de que somos pessoas normais e pessoas legais. Só isso. Parece um contrasenso, mas é um dia para exigirmos que a sociedade (leia-se esposa, filhos, pais, família, emprego, vizinhança, comunidade, etc) nos reconheça e nos trate COMO NÓS SOMOS!!! Será exigir muito?
Nenhuma de nós, entretanto, conseguirá obter essa vitória sozinha e de forma isolada. Assim, esse é um dia para lembrar a cada uma de nós o quanto precisamos umas das outras. O quanto devemos ser solidárias e suportivas umas com as outras. O quanto devemos respeitar as escolhas/necessidades e desejos umas das outras. O quanto devemos aceitar – como condições básicas para a convivência entre nós – as nossas diferenças individuais, de modo que algumas não se julguem mais ou menos importantes do que outras no contexto do nosso grupo.
A experiência da transgeneridade é algo quase impossível de ser completamente entendido (e aceito...) por pessoas que não vivem esse fenômeno em si próprias. E mesmo que as leis se modifiquem a nosso favor (e a maioria delas nem estão contra!!!), haverá sempre no ar aquela dúvida estampada no rosto de cada pessoa que se aproxima de nós: - mas pra que que você faz (ou quer fazer) uma coisa dessas?
Eu sinceramente desisti completamente de encontrar a resposta – e olha que eu quase cheguei à loucura tentando desesperadamente encontra-la.
Tudo que sei, hoje, é que a transgeneridade existe, que eu sou uma pessoa afetada por esse fenômeno e que existem milhões de outras pessoas nesse mundo vivendo processos muito semelhantes ao meu.
O dia 31 de março foi instituído para que a gente diga todas essas coisas ao mundo que nos cerca: esposas, filhos, amigos, vizinhos, chefes e colegas de trabalho. Enquanto ficarmos em silêncio, eles jamais saberão. E mesmo que muitos "arrepiem carreira" quando souberem é a única maneira de afirmarmos a importância disso em nossas vidas. Se continuarmos em silêncio, trancadas em nossos armários, tudo que vamos conseguir é uma baita de uma pressão alta, uma úlcera ou até um câncer, além de uma vida cheia de tristeza, frustração e insatisfação com a gente mesma.
Espero que, no ano que vem, haja mais vozes e mais ambientes falando sobre elas.
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Letícia Lanz é uma pessoa transgênera (crossdresser), psicanalista e criadora do site "Arquivo T - Arquivos de Uma Crossdresser", que pode ser acessado pelo link: www.leticialanz.org.
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