Revista Carta Capital
17/02/2009 11:52:30
Phydia de Athayde
"Quando eu crescer, vou ser mulher”, dizia, na infância, a psicóloga clínica Beth Fernandes, de 42 anos. Ela nasceu com um corpo de homem e por quatro décadas vivenciou um drama que, apesar de avanços recentes, ainda é mal compreendido. Não é fácil entender como alguém pode nascer homem e sentir-se mulher, ou vice-versa.
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A medicina reconhece o transexualismo como um “transtorno de identidade de gênero” que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, ocorre em um a cada 30 mil nascidos homens e uma a cada 100 mil mulheres. É raro, mas é real.
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Depois de tentativas frustradas de adequação, Beth seguiu um caminho comum a muitas transexuais. Aderiu a tratamentos clandestinos para tentar adequar o corpo de homem aos sentimentos de mulher. Há dez anos, escapou desse perigoso ciclo ao ingressar no Projeto Transexualismo, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás.
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O acompanhamento psicológico, psiquiátrico e endocrinológico antecedeu a cirurgia de transgenitalização, realizada em junho do ano passado. “Quando aconteceu, me senti aliviada e limpa. Minha vida mudou completamente. Finalmente, me encontrei socialmente. Hoje, posso entrar num shopping e tomar um café”, diz, orgulhosa. Até meados do ano passado, essas cirurgias eram realizadas apenas em caráter experimental, com o respaldo de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Em agosto de 2008, uma portaria do Ministério da Saúde mudou essa situação ao inserir o procedimento entre os previstos no Sistema Único de Saúde (SUS). Significa que o governo federal reembolsará os hospitais pela cirurgia.
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Assinada pelo ministro José Gomes Temporão, a portaria adota os termos do CFM e determina, entre outros, que os pacientes passem por uma equipe multidisciplinar e que recebam tratamento hormonal antes e depois da cirurgia, esta, somente autorizada após um diagnóstico preciso, que leva no mínimo dois anos para ser confirmado. Isso é rotina nos quatro Centros de Referência autorizados a fazer o procedimento pelo SUS, caso do HC da Universidade Federal de Goiás.
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“Com o pagamento das cirurgias, esperamos melhorar nossos equipamentos e ampliar a capacidade de atendimento”, diz Mariluza Silveira, professora do departamento de ginecologia e obstetrícia da UFG. Ela coordena o projeto do qual Beth é paciente e que, de 2001 até hoje, realizou 25 cirurgias. Neste ano estão programados dez procedimentos, o limite do hospital. “Para atender mais, precisaria aumentar a equipe cirúrgica. Além disso, quase todas as cirurgias desse tipo necessitam de, em média, um ou dois retoques”, diz.
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Os coordenadores dos Centros de Referência têm em comum a especialização obtida no exterior e o desafio de atender um grupo socialmente discriminado. “O reconhecimento do SUS é muito positivo, pois ainda existe muito preconceito contra transexuais, não apenas entre leigos. Esta é uma cirurgia reparadora tanto quanto a que corrige o lábio leporino. São situações gratificantes em que a medicina pode aliviar o sofrimento humano”, defende a médica.
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No Rio de Janeiro, o urologista Eloisio Alexsandro coordena o Centro de Referência do Hospital Universitário Pedro Ernesto (ligado à Uerj). Em 2008, fez 25 cirurgias. É pouco para a demanda. “Tenho 30 pacientes liberadas para a cirurgia e outras 50 inseridas no nosso programa. Preciso de mais horas no centro cirúrgico e de mais pessoal, pois o volume de trabalho cresceu muito”, diz o cirurgião. Além de provocar aumento na procura, ele acredita que a inclusão da cirurgia nos procedimentos do SUS ajudou a diminuir o preconceito. “Foi como se, mesmo sem entender bem, as pessoas aceitassem melhor, agora que o Ministério da Saúde chancela a operação. Ficou mais fácil na enfermagem, com o maqueiro, com os funcionários em geral.”
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Numa manhã de quarta-feira, a esteticista Beatriz de Jesus Cordeiro, de 27 anos, esperava pela primeira consulta no programa coordenado por Alexsandro. “Sei que a maratona será longa, dois anos no mínimo, mas estou muito disposta. Nas transexuais, a mulher aflora de dentro para fora. Se um dia eu puder ser mulher de fora para dentro, realizarei o sonho de uma vida”, diz ela, que nasceu homem e milita na Associação das Travestis, Transexuais e Transgêneros do Rio de Janeiro.
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Como os demais, o Centro de Referência no Rio Grande do Sul sofre com a demanda maior do que a capacidade de atendimento. Walter Koff, responsável pelo programa no Hospital das Clínicas de Porto Alegre (ligado à UFRGS), lamenta que a cirurgia para as mulheres (menos frequente) e o implante de prótese mamária para os homens não tenham sido incluídos na portaria do SUS (a redução do pomo-de-adão, por exemplo, está). Até antes do documento, esses dois procedimentos eram reembolsados pelo convênio do HC com o governo gaúcho. “A portaria é positiva porque, teoricamente, aumenta o acesso à cirurgia. Mas a luta é para incluir esses dois procedimentos.” O HC gaúcho realiza, em média, 25 cirurgias por ano e, no momento, tem 100 pacientes em fase de preparo.
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O Centro de Referência localizado na maior cidade do País enfrenta a situação mais precária. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP tem apenas quatro funcionários na equipe responsável por fazer a triagem, o diagnóstico e a cirurgia. A endocrinologista Elaine Maria Frade da Costa integra o grupo e reconhece. “Temos um gargalo na avaliação psicológica e psiquiátrica e outro na hora de conseguir vaga para a cirurgia”, diz. Hoje, 98 pacientes cadastradas nem sequer tiveram o primeiro contato com a equipe. Há outras 80 em acompanhamento e, dessas, perto de dez aguardam apenas uma vaga para a cirurgia. O acesso de novos pacientes está fechado e será reaberto apenas em agosto.
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Na avaliação de Elaine, o reembolso do SUS não muda essa realidade. “Eu preciso é de vagas na cirurgia e não de dinheiro”, diz. “No HC faltam anestesistas, é um problema geral do hospital. É uma questão mais política e governamental do que financeira.”
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As limitações dos hospitais, seja em Goiás, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, seja em São Paulo, são bem conhecidas das transexuais. “Elas continuam sofrendo, continuam sem perspectiva, e as filas não andam”, reclama Carla Machado, militante do Coletivo Nacional de Transexuais.
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Se depender dos fervorosos da Câmara, tais filas nem sequer existiriam. O deputado Miguel Martini, do movimento Renovação Carismática da Igreja Católica, protocolou um projeto de lei que visa suspender a portaria do Ministério da Saúde. “Se o SUS não tem condições de atender as mulheres no pré-natal, nem pacientes oncológicos, como poderá fazer cirurgia para mudança de sexo?”, argumenta. Para a contenda seguir adiante, terá de passar por duas comissões na Câmara antes de ir a plenário.
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O secretário de Atenção à Saúde do ministério, Alberto Beltrame, considera descabido questionar a portaria que, no mais, está respaldada pelo CFM. “Nada do que é humano pode ser estranho ao SUS. Não é possível nem justificável que o SUS, que é público, universal e igualitário, dê as costas a uma parcela da população”, diz. “Não podemos aceitar uma argumentação que esconde um pensamento preconceituoso.”
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Desde a portaria até janeiro deste ano, o SUS reembolsou sete cirurgias, pelas quais pagou, ao todo, 8.120 reais. Esse valor representa 0,0016% do total pago pelo SUS por cirurgias de alta complexidade em 2008.
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